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Veredas da Liderança em Guimarães Rosa

A trajetória de Riobaldo em Grande Sertão: Veredas encerra algumas reflexões importantes sobre a formação e as atitudes de um líder.
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Publicado em 08.06.2008 - Edição 505

          É discutível que a liderança possa de fato ser ensinada — pelo menos no sentido de ser transmitida —, não obstante haver cursos e livros destinados a esse fim. O tema tem vasta bibliografia e é naturalmente controverso pelos aspectos psicológicos e subjetivos que lhe são inerentes. À parte isso, penso que vale a pena refleti-lo à luz da literatura, como o fez o professor Joseph Badaracco Jr., da Harvard Business School, no livro Uma questão de caráter: como a literatura ajuda a identificar a essência da liderança, lançado no Brasil em 2007.
         
Como representação socioexistencial, não é de hoje que a literatura fornece um abundante material de análise. E foi sob esse aspecto que o professor Badaracco foi buscar em obras de nomes como Sófocles, Scott Fitzgerald e Joseph Conrad exemplos de variadas lideranças que tanto se impõem como... se esfacelam. No Brasil, pela proximidade que tenho com Guimarães Rosa, cujo centenário de nascimento transcorre este ano, ocorre-me lembrar sua obra-prima, Grande Sertão: Veredas, na qual, em meio à complexidade literária, se revela a liderança de Riobaldo, personagem principal e narrador da história.
         
Penso que em Riobaldo, chefe jagunço e semiletrado, cristaliza-se uma inequívoca trajetória de liderança. Mas ele — em cujo nome, como já foi observado, encontram-se as antecipadoras palavras rio e baldo (em vão) — não é inicialmente um líder. Pelo contrário, subjugado por códigos praticamente medievais e guerreiros, é, a princípio, apenas um tímido e atento aprendiz e só aos poucos se destaca dos demais companheiros jagunços. Riobaldo, como costuma acontecer, forma-se e torna-se líder. Para tanto, estuda, observa, treina e... ama, adquirindo, com seu amor por Diadorim, a coragem que de saída lhe falta. Apesar do seu esforço intelectual, traz em si, como já observado pela crítica literária, um espírito hamletiano em que uma dúvida obsessiva impede-o de avançar na realidade prática. Então, para liderar e vencer, vende sua alma num pacto com o demônio, o que, independentemente da problematização conferida pelas várias vertentes da obra, parece lhe conferir um poder sobrenatural. Com esse artifício, exorciza suas últimas fraquezas e conduz seus homens com a autoridade de quem antes se convenceu a si mesmo. Tal condução eficaz, alegorizada pelo rito de passagem de um grande e hostil deserto, leva-o a triunfar sobre as dificuldades internas e externas, em busca de sua meta final — a vitória sobre a facção dos inimigos.
          Na obra-prima que é o Grande Sertão, ampla metáfora de um mundo agônico, onde são decisivos os signos da travessia e do homem a caminho, a liderança é um dos maiores subtemas e, com certeza, não se restringe apenas a Riobaldo. Ele próprio, ao se referir e celebrar as demais chefias que o precedem, também compõe um painel diversificado de qualidades de liderança, destacando-se, nesse sentido, os soberbos perfis de Joca Ramiro, Medeiro Vaz e Zé Bebelo. Estes são "chefes" justamente porque são líderes. Deles, Riobaldo adquire sabedoria, habilidades e características próprias de um líder que honra e incorpora a tradição dos predecessores.
          Ocorre, no entanto, que a liderança de Riobaldo, como tantas outras, também falha, e logo no clímax da narrativa! Todo o seu longo e árduo preparo não foi suficiente para o enfrentamento final. A vitória última que redimiria a todos só indiretamente conta com a sua participação. Toda a sua técnica e toda a sua intuição ficaram como que embotadas pela emoção de testemunhar, no duelo final, a ação decisiva de Diadorim, que, ocupando assim o lugar da liderança prática, paga, com a morte, o ambicionado triunfo. Traído por esse aspecto subjetivo e psicológico, entrega-se à expiação de mais uma culpa, dessa vez duplamente imperdoável e da qual o seu monólogo narrativo é o próprio espelho. Mas talvez haja uma última lição, tão discreta quanto importante, a ser extraída de tal desfecho: não se deve confiar ao "demônio" a liderança, pois a conta, como se vê, pode ser muito alta!


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