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O texto que vem da voz

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Publicado em Sun Jul 08 15:51:00 UTC 2001 - Edição 146
É cada vez mais freqüente, no mundo corporativo, o registro escrito, com vistas à publicação, de participações orais em cursos, seminários, palestras, etc. Há uma aparente facilidade em se editar textos (anais, memórias, etc.) que originalmente não foram pensados para a comunicação escrita. Digo aparente porque aos não-especialistas o texto parecerá, com facilidade, fluir da voz para o papel, como se a gravação magnética ou eletrônica tivesse o condão de transferir uma realidade - a da elocução original, com todos os seus aspectos extralingüísticos (cênicos, fisionômicos, gestuais, etc.) - para uma textualidade escrita (sic) pacífica, livre de quaisquer obstáculos e fiel ao que foi falado. Nada mais enganoso.

Se o próprio texto planejado, escrito para ser impresso, requer uma vigilância editorial (semântica e comunicativa) de sua qualidade, o que dizer do texto que vem da voz, impregnado das características da oralidade? Para um teste rápido, basta observar a transcrição puramente fiel e literal de determinadas falas. O que foi uma "brilhante" palestra no auditório do seminário pode se reduzir a um amontoado de frases entrecortadas, cujos nexos lógico-sintáticos esgarçados e as pululantes ambigüidades deixam patente que o "brilhantismo" se resumiu à ambiência em que foi pronunciada. Como esse fato é comum, não há qualquer "tranqüilidade" no exercício da editoração de transcrições. Em certos casos, a busca pelo "conteúdo" pode até ser uma completa desilusão, dada a "resistência" do material verbal com que se tem de trabalhar.

Daí a importância de um serviço de transcrição que à competência lingüística alie uma adequada visão editorial. O tema foi alvo do mais recente livro do lingüista Luiz Antônio Marcuschi, da Universidade Federal de Pernambuco, intitulado Da Fala para a Escrita: atividades de retextualização. Fruto de dez anos de pesquisa, a obra nos mostra, entre outras análises, as complexas operações envolvidas nesse tipo de trabalho (paragrafação, acréscimos, eliminações, substituições, etc.). Cientificamente, Marcuschi aponta e sistematiza o que nós outros, prestadores de serviço, testemunhamos e praticamos no dia-a-dia.

Dessa forma, caso se deseje qualidade, é preciso investir no profissionalismo e na valorização de uma editoração eficiente, capaz de transformar a fala em texto, sem incorrer na ilusão de que este negará por completo a sua origem oral. Trata-se de um trabalho árduo em que corte e costura vão retecendo os caminhos dos sentidos, modelando estrategicamente o texto para que ele se torne legível. Naturalmente, o modo de trabalhar varia conforme a competência e a sensibilidade de quem pratica essa espécie de tradução interna à própria língua. Há um grau de arbítrio e de subjetividade considerável em cada caso, o que pode tornar o trabalho ainda mais instigante e sedutor.

O que não seduz e também não facilita as coisas é o largo desconhecimento da natureza de tal serviço no nosso País. A sua quase "invisibilidade", ainda que profissionalmente necessária, não autoriza o recurso ao amadorismo fácil e a uma remuneração que deixa a desejar. Por isso, não é demais lembrar as provocantes e sugestivas palavras da epígrafe deste artigo. Já é hora de abrirmos os olhos, pois as aparências enganam e, pior, podem causar grandes prejuízos.

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